Eram 18 horas na Unidade básica de Saúde. Sol se pondo. Fichas acabaram. Café com pouco açúcar…

Em sua cabeça, um monólogo básico com um pensamento em linha reta. Acaba às 19 horas. “Depois, irei para a casa” – preocupava-se com a condição de seu vínculo empregatício, pois a Organização Social já não pagava há um mês e ele não era CLT. Era contrato. Trabalhou, ganhou. Adoeceu, perdeu. Trabalho igual a grana. E ponto – “comerei alguma coisa, tomarei um banho e quem sabe, finalmente, dormirei” – a preocupação veio de novo.

Rasgando seus pensamentos chega a nova ficha.

– Estava fora daqui já!! – reclama com suas orelhas.

Paciente J, sexo masculino, 58 anos, sem comorbidades. Queixa principal na triagem era dor epigástrica. “Ah! Mamata! Vou chamar e termino logo isso! Última ficha. Última ficha”. Entrou um senhor de bochechas largas com fácies de dor e mão sobre epigástrio. Obeso. Se uma palavra pudesse definir sua ectoscopia seria “rugas”. Pois desde o Sinal de Frank em suas orelhas até o H na testa, tudo lembrava a palavra.

– Boa tarde, Sr. J., sou Carlos, médico do setor hoje. O que houve para que o senhor buscasse atendimento médico?

– Boa tarde, Doutor! Muita dor na boca do estômago!

Vamos à anamnese. Minto.

As dificuldades são limadas nestes textos médicos como uma barra de ferro por um fugitivo. Então, colocarei as perguntas feitas. A realidade. Forte, ácida e algo preguiçosa.

– Fale mais sobre a dor.

– É um peso, esquisito, começou agora mais cedo. Parece uma azia… acho que é azia!

– Explica o que seria a azia que o senhor está sentindo…

– Uma ardência com peso. Parece que comi carvão em brasa.

– Entendi… irradia para algum lugar? De 0 a 10, sendo 10 a pior dor que o senhor já sentiu na vida, qual a nota que daria para ela?

Tentava assim ser mais específico, pois as perguntas vagas não estavam ajudando em nada. Não havia progressão. O mundo da semiologia dos livros coloridos falhara. Agora era real.

– Não! Fica parada. Nota 6. Bem aqui. – apontou com o indicador.

-Sim… – manteve-se o silêncio e o contato visual. Esperava a espera. Entretanto, do silêncio fez-se o vácuo.

– O senhor tem alguma doença prévia? Diabetes, pressão alta? Toma alguma pílula ou comprimido?

“Nunca confio na triagem!”

– Não.

– Alguma doença na família? Perda de peso? Alguma outra queixa? Os nãos também chegaram.

Vamos examinar então. Sem examinar seria Omeprazol e casa. Mas, aprendera nas aulas da vida que examinar era sempre um caminho razoável. Pressão arterial de 170 x 100 mmHg. Igual bilateral. Teste de hipotensão postural não mostrou nada. Técnica correta da aferição da PA com palpatório. Frequência cardíaca de 96 BPM e respiratória de 18 irpm. Temperatura axilar de 36ºC. Pensa na idade. Hipocorado 1+/4+. Talvez seja a luz. Aparelho respiratório em perfeitas condições. Coração agora… vai dar nada… B4. Desdobramento de B2. Paradoxal ou fisiológico?

Cara de “House” e cabeça de acadêmico.

Busca a fisiologia. Parece desdobramento paradoxal de B2. Será que ele é diabético e está infartando? Não sente? Dor atípica? Na classificação de dor torácica, a definitivamente não anginosa vinha se mostrando provavelmente não anginosa.

“Gastrite e úlcera péptica são diagnósticos diferenciais de IAM!” Sentiu-se algo brilhante ao lembrar.

Palpação abdominal indolor, sem massas ou visceromegalias palpáveis. Busco linfonodos de Irish, Virchow. Sinal da irmã Maria José. Exame de membros inferiores também não mostrou nada. Nada. Solicita eletrocardiograma de 12 derivações.

É o que há de mais sofisticado na UBS. O técnico faz. Linha de base horrível. “Roda outro, por favor!”. Continua horrível. Levanta e ajuda o técnico. “Brasil do lado esquerdo e cores escuras embaixo”. Leve tricotomia. Algo melhor.

Pelo menos, agora, consegue usar o “FREIOS” com dignidade. Para você, amigo leitor, que não souber, o “FREIOS” é um acrônimo de “frequência, ritmo, eixo, intervalos, ondas e segmentos”. Ajuda muito o generalista quando este analisa um ECG.

“Tem uma onda U” – pensa. Não é nada.

Volta à anamnese.

– E a alimentação?

“Como esquecera de perguntar algo tão basal? Eu sou um médico horrível!” – pensou.

– É, doutor… esse fim de semana teve uma pequena farra lá em casa. Aniversário de 1 aninho do meu neto.

– E o senhor bebe? Comeu o quê? – fez sinal com o polegar como quem estivesse bebendo.

– Muito churrasco. Bebi demais.

– Quantas latinhas mais ou menos?

– Umas boas 16.

Como era terça e a festa ocorrera no domingo, o médico continuou a perguntar:

– E ontem? Como foi?

A resposta não podia agradar mais ao feeling do médico.

– Tomei muito café para ficar acordado. Uns 4 copos.

Conversou ainda mais com o paciente. Este contou que havia brigado com a esposa pois não queria ir ao médico.

Reexaminou a PA. Neste momento, 130 x 80 mmHg.

O médico seguirá o acompanhamento longitudinal do paciente. Espera ter visto a ponta certa do iceberg. No fim das contas, ser médico é navegar em um oceano com vários deles. Um mole e viramos o Titanic.