O colega da fisioterapia liga para meu celular na quarta-feira à tarde. Por coincidência, único dia em que não estava no local onde trabalho continuamente durante a semana. Queria conversar comigo sobre um caso aparentemente simples. Paciente 48 anos, iniciou quadro de distrofia em cintura escapular à direita com déficit de movimentação, a priori, em mão. Achei estranho, porém, tudo bem…

Relatei que não estava presente naquele dia e solicitei que ele voltasse no dia seguinte para que eu o examinasse.

No dia seguinte, logo cedo, aparece-me um senhor corpulento (corpo de jogador de futebol americano) com cabelos grisalhos e olhos muito desanimados. Por uma questão de formalidade, apresento-me, aperto sua mão e pergunto seu nome. O senhor X apertou minha mão com uma dificuldade homérica. Meu sexto sentido despertou gritando descontrolado na minha cabeça. Porém, duas coisas são muito difíceis na medicina. A primeira é dizer que qualquer paciente está completamente são quando ele comparece com uma queixa. A segunda é calar os instintos do médico em primeiro momento. Temos que ter estes instintos, porém, eles não devem nos guiar. Eles devem ser, no máximo, um auxiliar para ouvirmos melhor o que o paciente tem a nos dizer, pois, como dizia Osler, ele nos dará o diagnóstico da própria moléstia.

Colho uma anamnese bastante rica, uma vez que o caso era de muito interesse de minha parte. Nela encontro um paciente previamente hígido que após um trauma em região de ombro direito há três meses, iniciou um quadro de diminuição do tônus muscular naquele membro e incapacidade de fletir o braço ipsilateral ou fazer qualquer movimento dependente do ombro. Sem comorbidades. Era atleta. Jogou futebol por bastante tempo de sua vida. Diz ter sido um ótimo zagueiro. “Daqueles de mão cheia, doutor!!” – disse com lágrimas nos olhos. Entretanto, não falou sobre um fato que havia verificado exatamente no momento em que ele havia passado pela porta… uma marcha escarvante de membro inferior direito.

Inicio meu exame físico neurológico ao solicitar que ele se dispa.

Uma vez despido, solicito que ande de um lado para outro da sala trancada. Marcha realmente escarvante e uma rotação lateral de ambos os membros inferiores. Movimentação de cintura escapular aparentando uma leve instabilidade.

Na parte de estática, não conseguiu manter-se em posição para a verificação do sinal de Romberg. Muito menos realizar a manobra in tandem (com um pé na frente do outro). Continuo com o exame da força. Aí vem o primeiro problema, esta estava reduzida em muitas partes do seu corpo e a sua mão de Aaran-Duchenne entrou no meu sulco calcarino com a força de um cavalo de corrida. Impactou-me, no fim das contas. Nunca tive boas experiências com essa mão. Além disso, miofasciculações muito, repito, muito visíveis serpenteavam pela sua pele como ondas em um mar. Inspecionei a região escapular com esperança. Não fui atendido em minhas preces. Muita miofasciculação. A manobra de desvio-pronador foi quase instantânea em ambos os membros superiores. Em membros inferiores, Barré e Mingazzini também apresentaram comprometimento. Tônus sem alterações importantes ao exame. Coordenação impossível de ser acessada pela perda de força, entretanto, às provas de disdiadococinesia e índex-nariz, conseguiu realizar em seu tempo à movimentação pretendida.

O medo me assola. Na minha cabeça, lembro de todos os pacientes que vi que tinham a famigerada Esclerose Lateral Amiotrófica. Mas, ainda não terminamos o exame e, na neurologia, o exame completo junto à anamnese são nossas únicas formas iniciais de proteção contra a ansiedade e a dúvida.

Reflexos extremamente exaltados. Clônus em membro inferior direito. Reflexo adutor bilateral. Hoffman, Tromner e Babinski foram mais do que epônimos, foram experiências vivenciadas ali. Aumento da área reflexógena.

Sensibilidade com leve alteração em planta de ambos os pés.

Nervos cranianos apresentavam uma diminuição de força da língua e uma voz algo anasalada. Disse ter começado a mudar naquela semana. Meu coração se aperta. Não posso me deixar levar. Não posso. É meu compromisso com a verdade e para com ele.

Sem irritação meníngea ou alteração no estado mental, exceto pelo choro fraco ao falar do filho e do passado. Parece algo pseudobulbar talvez.

Sento com ele, verifico que ele havia sido submetido à ressonância nuclear magnética. Ponho seus achados nos critérios de Airlie house (EI escorial World Federation of Neurology criteria) e chego ao achado de uma bastante provável Esclerose Lateral Amiotrófica. Precisava daquela imagem supracitada e de uma eletroneuromiografia “para ontem”. Solicitei os exames e pedi encarecidamente que voltasse com todos eles.

Neste momento, ele me agradece. Diz que se não fosse eu, talvez ele continuasse perdido e que, naquele dia ele havia rezado e pedido a Deus uma resposta. Temi dentro de mim que a resposta não fosse boa. Neste momento, o paciente diz que o único sonho dele é voltar a jogar futebol com o filho, pois estava se sentindo um peso para sua família e para o mundo. A lágrima que escorreu dos meus olhos foi incontida. Segurei o máximo que pude. Aprendi que não posso chorar com paciente. Sou jovem e tenho medo que isso transmita insegurança, porém, neste caso não o era. Era compaixão e dor. Caso os exames não me mostrassem outro panorama, aquele sonho nunca mais iria ocorrer.

Lembrei de todas as crianças neuropatas deixadas de lado pelos pais que haviam dito uma frase parecida com aquela. Lembrei de uma criança com paralisia cerebral que conheci – esta e eu havíamos ficado em êxtase pois ela estava aprendendo a andar. Disse a ele que Deus tem um plano para todos nós por uma questão de confortá-lo.  Tomara que seus sonhos sejam cumpridos e que ele tenha uma vida feliz. Às vezes, somos acostumados a nos julgar tanto e a pesar tantas decisões. Se pudesse pedir algo a Deus naquele dia seria que ele jogasse futebol com o filho uma última vez. Chorei em casa depois. Há uma semana estou aguardando os exames que consegui de urgência para ele com um amigo.

Apertei sua mão e ele saiu da sala. Saiu da incerteza para a busca de uma dura realidade.