Leitura crítica de artigo: Pure Study Lancet 29/08/17

 Introdução

Nesta edição de leitura crítica de artigo, vou discorrer sobre o polêmico estudo publicado na Lancet em agosto de 2017, relacionando a falta de evidências sobre a relação de macronutrientes e doença cardiovascular. Esta associação foi bem estudada em populações europeias e americanas. Entretanto, a relação entre carboidratos, gorduras e doenças cardiovasculares não está subsidiada em outras populações. O objetivo de um braço do Prospective Urban Rural Epidemiology (PURE) study investigators é rever esta lacuna de conhecimento testando a associação dos macronutrientes (carboidratos, lipídeos e proteínas) com eventos cardiovasculares, mortalidade total e mortalidade cardiovascular.

Métodos

Uma coorte observacional de 135 mil indivíduos, em mais de 18 países de diferentes níveis sócio econômicos, foi acompanhada por até 10 anos (2003 a 2013). Selecionaram 148 mil indivíduos, os quais mais de 7 mil foram excluídos por apresentarem histórico de DCV previamente. Durante o seguimento do estudo, apenas 1230 sujeitos foram perdidos, o que representa 0,8% do total (pouquíssimas perdas).

Na análise estatística, realizaram regressão pelo modelo proporcional de Cox incluindo algumas variáveis confundidores para os desfechos. Os desfechos primários foram mortalidade total e eventos cardiovasculares maiores (MACE), englobando infarto agudo do miocárdio (IAM), acidente vascular cerebral (AVC) e insuficiência cardíaca (IC). Os desfechos secundários analisados foram mortalidade não cardiovascular. O ajuste para os fatores confundidores foi feito considerando os fatores conhecidos para os desfechos e variáveis aferidas, como tabagismo, hipertensão, dislipidemia, energia consumida (alimentação), entre outros. Também realizaram uma análise de subgrupo dicotomizanda em asiáticos e não asiáticos, pois os primeiros consumiam, proporcionalmente, mais carboidratos e bem menos gorduras. Esta análise foi realizada para dar mais consistência às associações e maximizar o poder de análise entre regiões do mundo. É importante notar que os países eram bem diferentes, incluindo países ricos com Canadá, Suécia e Emirados Árabes, pacientes considerados intermediários como Brasil, Argentina, Chile, Colômbia e China, e países pobres como Zimbábue, Paquistão e Bangladesh.

Resultados

Carboidratos (CHO)

Sobre os carboidratos, o grande consumo deste nutriente (mais de 67% do consumo energético referido) elevou o risco de mortalidade total, comparando-se o último quintil (consumo bem aumentado) contra o primeiro quintil (consumo de menos de 46% de CHO). Não houve associação entre consumo de CHO e MACE ou mortalidade CV. É importante frisar o alto consumo de CHO na população, superando qualquer outro estudo, especialmente aqueles realizados na Europa e EUA. Mais da metade da população do estudo consumia mais de 60% de suas calorias na forma de CHO. Um quarto da população consumia mais de 70% de CHO do total de energia ingerida.

 

Lipídios

A segunda grande constatação relacionou a baixa ingestão de gorduras totais à mortalidade total, mortalidade não CV e à incidência de AVC. O reduzido consumo de gordura saturada, elevou o risco destes eventos acima citados. À exemplo da análise dos carboidratos, não houve diferença estatística para aumento de risco de MACE e mortalidade CV.

 

Constatações

Não considero conclusões e sim, constatações. Este estudo agregou um perfil de alto consumo de carboidrato e baixo consumo de gorduras, sobretudo nos países mais pobres. 50% dos participantes ingeriram menos de 7% de gordura saturada, o que é recomendado para redução do risco CV.

Ao realizarem uma análise de substituição, ressaltaram o pior cenário: substituir gordura saturada por CHO aumentaria o risco de morrer e, possivelmente, o risco de AVC. As gorduras não estavam associadas ao desfecho CV, sendo ousadamente recomendado: 1- ingestão de gorduras totais de pelo menos 35% das calorias totais no dia; e 2- ingestão de 15% de gordura saturada por dia. Salienta-se a recomendação atual e amplamente estabelecida de até 10% de gordura saturada para pessoas sem fatores de risco CV e até 7% para indivíduos com fatores de risco CV.

Antes que comecem a reduzir o consumo de batata, arroz, cereais, etc aumentando a ingestão de torresmo, feijoada, carnes vermelhas com aquela capa de gordura, vamos analisar alguns pontos:

Críticas

Apesar de ótimo desenho e poucas perdas, o método de seleção e aferição das concentrações dos nutrientes foi simples demais. Utilizaram um questionário extenso e validado em muitos países, porém verificaram o consumo energético total apenas na entrada do estudo. Sim, não foi feito um acompanhamento de mudanças de hábitos alimentares, ao contrário da extensa busca por desfechos. Assim, muitos sujeitos podem ter modificado seu status quo, fazendo parte de outro segmento. Por exemplo, ao longo de 10 anos, um obeso, sedentário e tabagista com alto consumo de CHO pode ter se tornado uma pessoa ativa, ex-tabagista, mais magra e com outros hábitos alimentares.

Além deste ponto nebuloso da aferição, considero a falta de reprodutibilidade do estudo o ponto mais importante na redução do seu impacto. A análise do consumo de energia foi feita apenas pelo questionário, não utilizando-se equações preditivas ou calorimetria indireta, atualmente o método padrão-ouro para verificar o requerimento nutricional. Negligenciar o requerimento nutricional do indivíduo resultou em ampla faixa de calorias ingeridas (500 a 5 mil Kcal/dia), independentemente do peso, da altura, sobretudo do gasto calórico.

Outra questão controversa é a análise comparativa em quintis dos extremos. Os pacientes que consumiam mais CHO, atingindo mais de 70% do valor energético relatado foram comparados aos que consumiam menos (em torno de 45 a 50%), claramente fora da faixa recomendada entre 50 e 70%. Essa análise multivariada não considerou entre os fatores confundidores, os dados de requerimento nutricional, peso ou IMC. Claramente, comparar duas pessoas que ingerem a energia  (caloria total) e as mesmas proporções de nutrientes colocando-as no mesmo bojo não está correto. Se imaginarmos um obeso com 100 kg e um halterofilista com os mesmos 100 kg, ambos com a mesma concentração de calorias, eles certamente não terão a mesma necessidade energética.

Se analisarmos com mais cuidado, verificaremos a ausência de medida qualitativa deste consumo. Não houve uma diferenciação entre CHO complexos, simples, cereais ou açucares refinados. Não analisaram o consumo de proteína de origem animal ou vegetal. Por sinal, os sulamericanos consomem proporcionalmente mais proteínas que os outros povos.

Por fim, creio ser impossível adequar todos esses critérios em uma pesquisa deste tamanho. São muitas variáveis e devemos valorizar a iniciativa. No entanto, cada vez mais precisaremos personalizar nossa dieta, bem como nossos hábitos de vida e nossos medicamentos. Estamos passando por mudanças de paradigmas nos níveis de colesterol, nos níveis da pressão arterial, entre outros. Não podemos olhar apenas números e receitar um medicamento ou orientar um ou dois tipos de alimentos. Devemos considerar a cultura do paciente, a disponibilidade do alimento, o modo de preparo, as preferências do indivíduo e seu estilo de vida, para que possamos fazer uma boa orientação nutricional. Um estudo observacional desta monta não estabelece a relação inter nutrientes no nosso organismo. Não se consegue prever a fisiologia na absorção de cada nutriente e as propriedades deles, muitas vezes prevenindo doenças e mudando a história de cada pessoa.

Considerações finais e Perspectivas

O equilíbrio tem sido a tônica das discussões acerca dos hábitos alimentares. Se nos anos 50 as gorduras, especialmente saturada (de origem animal), foram incriminadas no processo aterosclerótico, hoje o alvo tem sido os carboidratos. Os carboidratos processados, açucares são péssimos ao perfil lipídico também. Elevam os triglicerídeos, reduzem o HDL e estão associados ao aumento de apolipoproteína B, intimamente ligada a partícula pequena e densa de LDL, muito mais aterogênica que o LDL maior (Apo A1). Ressalto dois importantes estudos ratificando a ingestão reduzida de gordura saturada: Micha R, et al. Association between dietary factors and mortality from heart disease, stroke, and type 2 diabetes in the United States. JAMA. 2017; Estruch R, et al. Primary prevention of cardiovascular disease with a Mediterranean diet. N Engl J Med. 2013.

Em outro artigo publicado oriundo do PURE study, a sugestão de alimentar-se de vegetais e frutas se confirma, mas a proporção necessária à algum benefício CV parece ser um pouco menor (3 a 4 porções por dia, ao invés de 6 a 8 recomendadas). Isto é assunto para outra discussão. Com certeza, análises de subgrupo virão e levantarão outras possibilidades sobre os hábitos de vidas de canadenses, paquistaneses e nós, brasileiros. No momento, o equilíbrio parece ser o mais sensato.